A minha noite no S. José
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Foto: Alda Carvalho |
Ontem o meu coração disparou desordenadamente como cavalo desgarrado em corrida desenfreada.
O medo tomou conta de mim e de ambulância fui parar ao S. José conduzida por uma
médica e uma enfermeira eficientes e carinhosas.
Fui
recebida por comitiva imensa que me ligaram a inúmeros fios e correntes e
mediram inúmeros parâmetros. E ali
fiquei só, no meio da noite, embora rodeada de gente a passar, frente a um
relógio que minuciosamente me indicava, piscando, cada segundo em cor vermelha
brilhante.
Uma
enfermeira passava de vez em quando, vigiando os aparelhos e sorria e eu sorria
para ela.
Nunca
me tinha dado conta de como a noite é longa e barulhenta, num hospital!
Ouvia, dentro daquelas três paredes, ou melhor
duas, ou talvez não houvesse paredes, apenas divisórias movíveis, tudo o que se
passava lá fora: alguém chamando sempre pelo mesmo nome que nunca respondia,
inúmeros e diferenciados ais, gente a passar em frente, uns atrás dos outros sem
motivo aparente, lamentações, conversas entre cuidadores que não dormiam…
Pareceu-me que naquele ambiente ninguém dormia!
Virava-me o que podia, presa por todos os fios
e pelos gráficos traçados pelo aparelho que me vigiava contínuo e pelo relógio em
frente que pouco se movia. Tentava
decifrar outros barulhos que não entendia, a certa altura pareciam-me carros de
lixo em recolha. Mas podia imaginar muitos
outros cenários sempre dantescos e falíveis.
Virava-me
o que podia, para um e outro lado. mas o tempo quase parado como o relógio me
dizia.
Fui duas vezes à casa de banho, sempre de cadeira
de rodas, ajudada pela enfermeira jovem, talvez para quebrar aquela monotonia. E
esperava ansiosamente a manhã que nunca mais chegava, pois, aquele relógio
teimava em só mover os segundos arrastadamente.
Mal
clareou a agitação aumentou e fui despejada e transportada para outra sala onde
havia outros doentes e iria ficar ali até ter alta dos médicos. Era o único
lugar vago para a minha cama e fiquei junto á entrada, felizmente.
Naquela
sala havia uma só mulher, de resto eram homens e a enfermeira que me recebeu veio-me
confessar que eu era a única com alguma cabecinha. Um estava sempre a
queixar-se e pelos vistos tinha estado toda a noite a falar, dizia a enfermeira
que não tinha deixado dormir ninguém; havia uma única mulher que dizia que
nunca tinha visto tanto homem. Eles despiam-se, puxavam os cortinados, tiravam
as fraldas, despejavam os urinóis na cama…. Tiveram que mudar a cama duas vezes
ao que estava ao meu lado enquanto eu lá estive. Havia um negro com uma
cicatriz antiga na cabeça, que estava de pé e se recusava a deitar ou sentar,
que pedia dinheiro aos outros doentes, que abria gavetas, que dizia que tinha
fome e o pequeno-almoço nunca mais vinha, e só falava crioulo. A enfermeira
perdia a cabeça com ele e uma ajudante também o repreendia, mas não adiantava.
Eu, assim que cheguei, encolhi-me o mais
possível, puxei o lençol até aos olhos e virada para o bocado de parede, que
afinal era um armário, só desejava que me dessem alta rapidamente.
Aí tive conhecimento da realidade dos hospitais
e lembrei-me do inferno de Dante. Tive pena de todo aquele sofrimento. Pena dos
doentes, e de todos os que tratam deles. Todas aquelas salas eram urgência. Mas as
salas são espaços pouco privados que correspondem a corredores amplos do antigo
convento onde encostados a uma das paredes estão as cabeceiras das camas, lado a lado a
todo comprimento, como se fora um hospital de campanha onde estão os feridos
das batalhas da vida, os moribundos, os sem esperança. Estou a falar das urgências
que correspondem a centenas e centenas de sofredores à espera de serem curados
ou de morrer.
Entretanto na minha sala, situada no final desse corredor havia uma enfermeira que quase dava em doida para atender às
necessidades dos seus acolhidos. Mesmo
naquela barafunda chegou ao pé de mim e deu-me informações precisas sobre o que
me iria acontecer e pediu-me desculpa das condições. Agradeci-lhe e disse-lhe
que cada vez tinha mais respeito e admiração pelo trabalho que desenvolviam
naquelas situações.
Felizmente a médica chegou com os exames e a
ordem de soltura tão por mim desejada. Vesti-me rapidamente e saí, ainda antes
do pequeno-almoço.
Agradeci
à enfermeira e a todo o Universo. Estava tudo bem e o diagnóstico confirmado.
Passei então por todo o corredor com as camas
de topo para a parede alinhadas lado a lado, sem cortinados, pois não havia
espaço sequer para a mínima privacidade e as pessoas deitadas à espera de nada
ou de tudo, possível ou impossível, esperando. E aí pude constatar a extensão
do problema.
Deixo
aqui registado o meu agradecimento e admiração pelas pessoas que ali trabalham em
condições pouco próprias, para não dizer péssimas, e a minha profunda compaixão
pelo sofrimento humano.
Um hospital, e principalmente este hospital, é
um mundo que todos devíamos conhecer e tentar fazer alguma coisa para melhorar as condições
dos profissionais e dos utentes.
Desejo muito que já estejas bem, Alda. Ou pelo menos medicada de forma a não teres de repetir a urgência. Vou pensar em ti com muita força. Como diz um amigo, "pode ser que resulte".
ResponderEliminarÉ assim mesmo o mundo dos hospitais. Talvez S. José seja um bocadinho pior. Mas, pela descrição, até o achei melhor que o hospital distrital de Évora onde o pessoal, sobretudo da medicina e enfermagem, me pareceu tão embotado na desgraça dos utentes que tudo é possível. E portanto, se desleixam e, mau grado terem presentes as visitas, conversam uns com os outros em alta voz na sala de cuidados intensivos. Por exemplo. Também te posso dizer que do Hospital de S. José tenho uma experiência muito melhor: visitei a sala idêntica e não é permitido às visitas levantar a voz, só entra uma por doente e existe uma enfermeira sempre presente e silenciosa. Nada disto vi em Évora na unidade de cardiologia. Acredito que o pessoal médico e de enfermagem esteja sobrecarregado e até desmotivado, mas não me parece causa para o desrespeito de regras deste calibre. São lugares onde a morte espreita todos os pacientes. E sim, também tive essa experiência de corredores cheios de macas e doentes do mais variado calibre e condição.
Quanto às noites passadas em hospitais, é tal qual como tão bem descreves: um inferno. E pode ser pior se o veredito é que fiques internada. Graças a Deus não o tiveste. Não sei de quem possa dormir nesse meio. Julgo que só um soporífero forte pode ajudar, porque é de loucos. Coisa que não se apaga de mim é essa lentidão dos ponteiros. Quando nos parece ter passado uma eternidade afinal foram só uns quinze minutos. E tanto que tarda a amanhecer.
Que o teu pesadelo ao vivo se não repita, Alda. Tem tento nesse coração que é tão bom para quem o rodeia e não sabe tratar de si.
Um beijinho e melhorinhas
Como no Domingo não era dia de Blog, só agora li este desabafo.
ResponderEliminarFico muito feliz de tudo afinal, estar em ordem e de que o programa familiar tenha sido mantido.
A minha vida já foi salva no S. José, onde estive internado alguns meses, 46 dias nos Cuidados Intensivos de Queimados. Foi no mesmo ano que morreu a Princesa Diana em Paris. Foi em Agosto de 1997, já lá vão quase 30 anos.
Há problemas que por vezes atingem uma dimensão tal que são humanamente impossíveis de resolver. Se num curto espaço de tempo de meia dúzia de anos, passamos de 400 mil imigrantes para mais de um milhão e seiscentos mil, o SNS não poderá responder.
Foi só uma interminável noite, Alda. E que acabou bem.
Voltaremos a falar pessoalmente neste assunto, querida Amiga.
Um abraço solidário.
O teu texto está maravilhosamente escrito. Sentimo-nos a viver contigo tudo o que tão bem expressas. A ver e a ouvir tudo em pormenor. E somos abanados por essa dura realidade e pelo sofrimento- maior ou menor - das personagens que descreves. É a realidade dos nossos hospitais "gratuitos" não pagos pelo utente, se bem que por todos os contribuintes. Mas ainda bem que existem, que estão abertos a todos e que ainda há pessoal médico disposto a lá permanecer. Apesar de todas as agruras. Que bom que a tua inesquecível estadia tenha sido tão curta. Abracinho
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